Por Battista Soarez
NOS ÚLTIMOS ANOS, algo na igreja cristã tem me chamado atenção. Vivemos um cristianismo complexo e confuso. Formas de pensamento que dividem o corpo de Cristo aos pedaços. Falta de compreensão no que concerne aos princípios ensinados por Jesus que caracterizam a lógica daquilo que define, de fato, o sentido do reino de Deus. A noção de salvação é o tema central do cristianismo, mas isso tem de ser compreendido na perspectiva do reino. E este deve ser o magistério da igreja ao longo de sua trajetória.
Na ótica do reino de Deus, o Novo Testamento nos apresenta muitas expressões do que significa a “certeza da salvação”. O fato de estarmos salvos é uma convicção de liberdade e consciência na pessoa do Cristo. Essa liberdade não é, de maneira alguma, uma liberdade que nos tira da escravidão do pecado e nos torna escravos da religião. Jesus nos tirou da escravidão do pecado e, também, da escravidão da religião. Mas o que eu vejo é que as pessoas se libertam do pecado para se tornarem escravas da religião, ignorando verdades bíblicas que afirmam que “se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36) e que “foi para liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5.1).
Isto quer dizer que fomos libertados do pecado, da lei, da morte, das trevas, do mundo perdido. Quer dizer, também, que fomos reconciliados com Deus, perdoados de todas as nossas culpas. Então, na perspectiva do reino de Deus fomos chamados para vivermos uma nova vida. Isto porque, em Cristo, o Senhor do Reino, fomos justificados, santificados, filhos de Deus, templos do Espírito Santo e irmãos de Jesus Cristo.
No reino de Deus, nós experimentamos a alegria, a consolação, a verdadeira liberdade, os dons do Espírito. Nisto, somos capacitados no amor, na perseverança, na esperança da ressurreição e, assim, todas estas coisas nos fazem participar da vida em Deus.
Na perspectiva do reino, a salvação é a plenitude do ser humano, isto é, o sentido último de sua vida. Uma espécie de realização total em matéria de felicidade. E isso para toda a eternidade. Em Cristo Jesus, a salvação do ser humano é Deus. É uma comunicação Deus-homem-Deus que só será plenamente vivida na eternidade. No século 21, a fé cristã moderna não tem conseguido compreender essa dimensionalidade do evangelho do reino. Se tivesse compreendido a salvação na perspectiva do reino, não estaria vivendo as fraturas sociais que ela tem vivido no plano de uma certa pedagogia da espiritualidade cristã (Mt 28.19-20), que deveria estar impactando todas as nações da terra.
A fé cristã nos dias atuais tornou-se complexa e plural. Primeiramente porque não existe um ser humano abstrato. Todos nós, humanos, estamos inseridos num contexto vital de sociabilidade, historicidade e culturalidade. Nesse contexto, estamos cercados de ameaças concretas, desafios, mentalidades específicas e culturas distintas umas das outras. É neste contexto que a fé cristã coloca os habitantes da terra na experiência da salvação, conectando-os ao reino de Deus. Aqui, na cultura do reino, tudo é diferente. Aqui não há mais lei, nem dogma e nem religião. Tudo se transformou em princípios do reino. “As coisas velhas se passaram, e eis que tudo se fez novo” (2 Co 5.17). Quem entra para o reino de Deus, entra na maior plenitude da vida. E a pessoa, então, estará liberta do mal social que a perturba: o pecado. Sim, o pecado é um mal social que afeta toda a existencialidade da pessoa humana (o pecador).
No decorrer da história cristã, as expressões da salvação tendem a ser contextualizadas e a fé cristã — termômetro da igreja corpo de Cristo — estará apta para protagonizar novos questionamentos e novas linguagens frente às atuais mudanças de um mundo supramoderno. Tão moderno a ponto de não se entender mais sua complexidade.
Como jornalista, escritor e pastor, tenho observado que as expressões do passado têm se evidenciado em postulado de verdades que não devem ser descartadas em hipóteses alguma, haja vista representarem a riqueza da novidade de vida da qual se nutre a nossa fé no Deus criador de todas as coisas. E, assim, estaremos em absoluta segurança na caminhada de vitória contra as mazelas deste mundo tenebroso. Por mais que soframos, venceremos — caso a nossa fé em Cristo não for irrelevante.
Nos últimos anos, o tom das minhas pregações tem sido no âmbito de uma igreja que valoriza a riqueza das relações. Isto é um fator da inteligência espiritual que valoriza a ideia de uma salvação diversificada que vem a ser o próprio indivíduo, o humano, que é gente de carne e osso. Aliás, o indivíduo [humano] constitui uma rica realidade complexa. Complexa no sentido de ele ser um “ser”, isto é, um corpo (soma) constituído de uma natureza espiritual, pessoal, social, psicológica, ambiental, política e cultural ao mesmo tempo. No nível das relações — com Deus e com o outro social-antropológico — qualquer uma dessas áreas da vida humana pode clamar por vida eterna [salvação].
A fé cristã, por conseguinte, é intrínseca à salvação da pessoa humana. Quando recebemos a salvação em Cristo, confessando-o pela fé, somos iluminados, orientados, saneados, corrigidos, estimulados, plenificados e instruídos em todos os setores da vida. Nisto se manifesta a plenitude do reino de Deus. E quando estamos revestidos da plenitude do reino não estamos limitados em nenhuma dessas áreas. Isto porque, uma vez confessando “a Jesus como Senhor” (Rm 10.8-10), o poder do Cristo de Deus logo preenche, em nós, todas essas áreas. Consequente e inevitavelmente, surgem compreensões diversas no universo das experiências salvíficas que preenchem todas essas áreas. Toda a história cristã, no plano neotestamentário, nos confirma isto.
A partir desta visão, o dom de Deus aponta para uma humanidade fraternizada. Isto justifica o nosso empreendimento para a fé cristã salvífica nos dias de hoje. Como dom de Deus, a salvação é oferecida a todos os seres humanos — independente de etnias — gratuitamente em Cristo Jesus. É graça de graça. Nenhuma ideologia, seja ela qual for, consegue substituir ou contradizer a verdade absoluta da graça de Deus. Por que? Porque a graça de Deus está fundamentada no evangelho da Cruz: morte e ressurreição de Jesus Cristo, na qualidade de Senhor do universo, no qual se formou a igreja (Ef 1.22).
Nos dias de hoje, as cosmovisões e/ou ideologias prometem uma humanidade feliz e sem os males da vida. Mas cada vez mais mergulhamos em ruinas sociais. As tentativas de autossalvação do homem sempre o conduzem a tragédias sociais. Muitas são as contradições e os desacreditamentos. As tentações são frequentes em torno dos seres humanos, levando-os a atitudes absurdas de emancipação de Deus. Mas isso tem um preço doloroso: a perdição eterna. Tudo é uma loucura. Todos estão perdidos sem Deus no mundo. E Deus parece estar calado nas palavras, mas falando alto em forma de tragédias e sofrimentos no seio das sociedades modernas e complexas. A ciência está perdida. E a tecnologia está confundida e causando danos na humanidade.
Enquanto isso, a fé cristã se esfria a cada passo na história da igreja. Uma igreja que não tem mais noção de si mesma, isto é, não tem mais compreensão sobre sua própria identidade. E uma igreja sem noção de sua própria identidade é uma igreja perdida no espaço e no tempo, sem previsibilidade de como será seu amanhã. É como eu disse numa de minhas pregações algum tempo atrás: a moral do evangelho da religião-igreja é de causa e efeito. Mas o efeito acaba extrapolando a causa.
Recentemente eu falei para um pastor — que falou mal de outro pastor para mim — assim: “quando você não estiver mais vazio de Deus, conseguirá ver Deus no outro seu irmão. Você só está falando mal do outro pastor porque você está vazio de Deus. Quem está cheio de Deus não vê os defeitos do outro”. Dias depois fui informado de que o pastor que falou do outro pastor para mim estava dando em cima de duas jovens bonitas de uma outra igreja, sendo que uma era casada.
Como cristão, vejo que essas coisas me cansam. E a minha decepção com a igreja visível é que ela esconde o que é real e usa o púlpito para pregar o que não é real. Regras e doutrinas igrejeiras servem de chicotes para baterem em pessoas humildes que vão aos cultos em busca alívio, sentido e cura para suas vidas sem significado. Mas, ao ouvirem o pastor ou conviverem com os crentes, saem do ambiente piores do que entraram. A decepção abre feridas e lacunas emocionais que logo se transformam em crises existenciais. As pessoas ficam frias e se afastam. E aí ficam desconectadas do processo do “puro-amor” de Deus. Saem do alinhamento espiritual que dá sentido e significado à nossa existência, em que somos capacitados a atuar na busca significante por uma humanidade mais fraterna e justa.
Quando encontramos sentido e significado em Deus, nossos erros e pecados não conseguem anular nossa responsabilidade diante da história. Eles são eliminados e, então, recebemos a graça da governança pessoal guiada pelo Espírito de Cristo. O dom de Deus se manifesta e nossa inteligência descobre a liberdade de governar até mesmo as coisas mais complexas da vida. E, então, se aprende sabiamente que religiosidade não tem nenhum valor no reino de Deus. Na verdade o que importa é a graça e o dom de Deus. Porque a graça e o dom de Deus apagam as bestialidades humanas. Apagam até mesmo as desigualdades no ambiente da espiritualidade da igreja. A espiritualidade atual, no entanto, precisa receber a graça e o dom de Deus para poder encontrar sentido e significado e, assim, impactar as conexões do mundo.